Kristian Carlos Silva Amazonas*
No turbulento cenário geopolítico do Oriente Médio, onde conflitos arrastam-se por décadas e crises humanitárias acumulam-se, é fundamental compreender as raízes dessa instabilidade. Para tal, devemos lançar um olhar geopolítico sobre um documento centenário, forjado em segredo nas salas dos impérios, cujas consequências ecoam ainda hoje: o Acordo Sykes-Picot. Este pacto foi formulado pelo Coronel Sir Tatton Benvenuto Mark Sykes (1879-1919), militar, diplomata e político britânico, e por François Marie Denis Georges-Picot (1870-1951), diplomata e advogado francês.

O Acordo Sykes-Picot, assinado secretamente em maio de 1916 entre o Reino Unido e a França, com o consentimento da Rússia Imperial, foi um pacto crucial que dividiu as províncias árabes do Império Otomano antes mesmo de sua derrota na Primeira Guerra Mundial. Seus termos estabeleceram esferas de influência para cada potência: a França obteve controle sobre o que hoje são Líbano, Síria e partes do sudeste da Turquia, enquanto o Reino Unido assegurou a Mesopotâmia (atual Iraque) e o controle sobre portos como Acre e Haifa. Esse acordo desconsiderou as promessas de independência feitas aos árabes em troca de seu apoio contra os otomanos e suas fronteiras artificiais e arbitrárias são frequentemente apontadas como a raiz de muitos conflitos e instabilidades geopolíticas no Oriente Médio até os dias atuais.
Um Império em Declínio e Ambições Imperiais
Para entender o Acordo Sykes-Picot, é preciso recuar no tempo. O Império Turco Otomano, outrora uma potência temível que se estendia por vastas partes do Oriente Médio, do Norte da África e do sudeste europeu, entrava no século XX como o “homem doente da Europa”. Seu declínio gradual, marcado por problemas internos, pressão externa e resistência das populações locais, gerou uma voracidade imperialista por parte das potências europeias, ansiosas por se apropriar de seus territórios.
A Primeira Guerra Mundial acelerou esse processo, com o Império Otomano aliando-se às Potências Centrais (Alemanha e Áustria-Hungria) e tornando-se inimigo direto da Tríplice Entente (Reino Unido, França e Rússia). Londres e Paris viram, então, uma oportunidade de redesenhar o mapa do Oriente Médio, garantindo seus interesses estratégicos, geopolíticos e econômicos, especialmente o acesso ao petróleo e às rotas comerciais que ligavam o Oriente e o Ocidente.
Promessas Quebradas e Interesses Ocultos: O Papel dos Envolvidos
O Acordo Sykes-Picot foi um produto da diplomacia secreta e da hipocrisia das potências ocidentais.
- Grã-Bretanha e França: os principais arquitetos do acordo, tinham como objetivo dividir a influência sobre os territórios árabes do Império Otomano. O acordo traçou uma linha imaginária diagonal da cidade de Acre, no Mediterrâneo, até Kirkuk, no Iraque. Ao Norte dessa linha, a França teria uma esfera de influência (futuro Líbano e Síria), e ao sul, o Reino Unido controlaria o que viria a ser a Transjordânia, o Iraque e partes da Palestina. Ambas as potências teriam controle direto sobre certas áreas costeiras e portos, visando garantir o controle sobre recursos estratégicos e rotas marítimas.
- Os Árabes: paralelamente às negociações secretas, os britânicos, por meio de figuras como Thomas Edward Lawrence (1888-1935), o Lawrence da Arábia, incentivavam a Revolta Árabe contra o domínio otomano. O Emir Hussein bin Ali, Sharife de Meca, recebeu promessas britânicas de apoio a um grande reino árabe independente em troca de sua ajuda militar. Essas promessas, contidas na correspondência McMahon-Hussein, contradiziam diretamente os termos do Acordo Sykes-Picot. Os árabes, ao lutarem ao lado dos Aliados, foram ludibriados, trocando um domínio por outro, sem a real autodeterminação almejada.
- A Rússia: inicialmente parte do acordo secreto, a Rússia Imperial deveria receber controle sobre o Leste da Anatólia e os estreitos turcos. No entanto, com a Revolução Bolchevique em 1917, os novos líderes russos denunciaram e publicaram o acordo, expondo a traição e a duplicidade das potências ocidentais, causando choque e profundo ressentimento no mundo árabe.
- Os Sionistas: um ano após o Acordo Sykes-Picot, a Declaração Balfour (1917) foi emitida pelos britânicos, prometendo apoio ao estabelecimento de um lar nacional para o povo judeu na Palestina. Esta declaração, que também contradizia as promessas árabes e o próprio Acordo Sykes-Picot (que colocava a Palestina sob administração internacional ou britânica), adicionou outra camada de complexidade e futuras tensões à região.
Um Século de Conflitos: As Consequências para o Mundo
As consequências do Acordo Sykes-Picot foram, e continuam sendo, catastróficas para o Oriente Médio e, por extensão, para o mundo.
- Fronteiras Artificiais e Instabilidade Interna: o acordo traçou linhas no mapa que não respeitavam identidades étnicas, religiosas ou tribais. Países como o Iraque e a Síria foram criados como entidades multinacionais, unindo à força sunitas, xiitas e curdos, entre outros. Isso gerou fragilidade interna, regimes autoritários que se mantiveram no poder pela força e uma propensão a guerras civis, como se viu na Síria desde 2011 e no Iraque pós-Saddam Hussein.
- Conflitos Sectários: a imposição de fronteiras e a ascensão de governos que favoreciam certas minorias ou maiorias exacerbaram as tensões sectárias entre sunitas e xiitas, historicamente presentes, mas instrumentalizadas para fins políticos.
- A Crise Árabe-Israelense: a Palestina, prometida tanto aos árabes quanto aos judeus, tornou-se o epicentro de uma das mais intratáveis disputas globais. A criação do Estado de Israel em 1948, em parte com base na Declaração Balfour e no legado do Mandato Britânico na Palestina (fruto de Sykes-Picot), deu início à crise árabe-israelense, que continua a gerar violência, deslocamento e um ciclo de ódio que afeta a segurança global.
- Ascensão de Grupos Extremistas: o vácuo de poder, a injustiça percebida e a fragmentação dos Estados permitiram a ascensão de grupos extremistas como o Estado Islâmico (ISIS). O ISIS, em sua propaganda, frequentemente denunciava o Acordo Sykes-Picot como a fonte de todos os males do Oriente Médio, prometendo “apagar” as fronteiras criadas pelos colonizadores. Além do ISIS, outros grupos como o Hezbollah, no Líbano, e o Hamas, na Faixa de Gaza, surgiram e se fortaleceram nesse contexto de fronteiras contestadas, aspirações nacionais não atendidas e a continuidade da crise árabe-israelense. Estes grupos, embora com motivações e alvos distintos, frequentemente capitalizam o ressentimento popular em relação à herança colonial e à ausência de autodeterminação genuína. A Organização para a Libertação da Palestina (OLP), embora tenha se transformado ao longo do tempo de um movimento de resistência armada para um ator político, também é um produto direto das aspirações palestinas por autodeterminação e do deslocamento causado pela criação de Israel, que por sua vez tem suas raízes no Acordo Sykes-Picot e na Declaração Balfour.
- Intervenções Externas Contínuas: a instabilidade gerada pelo Acordo Sykes-Picot convidou e justificou sucessivas intervenções de potências externas. Os interesses em petróleo, a luta contra o terrorismo e a rivalidade geopolítica entre EUA, Rússia, Irã e Arábia Saudita transformaram o Oriente Médio em um tabuleiro de xadrez onde milhões de vidas são peões.
- Crise de Refugiados e Deslocados: as guerras e a instabilidade resultaram em uma das maiores crises humanitárias da história, com milhões de sírios, iraquianos, palestinos e outros povos sendo forçados a deixar suas casas, gerando fluxos migratórios que impactam a Europa e outras regiões do mundo.
O Oriente Médio como Palco da Geopolítica das Grandes Potências
O legado do Acordo Sykes-Picot, marcado por fronteiras artificiais e promessas quebradas, transformou o Oriente Médio em um caldeirão de instabilidade, um terreno fértil para a projeção de poder das grandes potências globais. Hoje, a região não é apenas um vasto depósito de recursos energéticos, mas um campo de batalha onde se manifestam as complexas dinâmicas geopolíticas sob diversas dimensões:
- Econômica: a disputa pelo controle ou influência sobre as vastas reservas de petróleo e gás e sobre as rotas de transporte de energia continua sendo um pilar central. Países como China e Índia aumentam sua presença econômica, enquanto potências tradicionais buscam diversificar seus investimentos, mas ainda mantêm o foco na segurança energética. A busca por novos mercados e a construção de infraestruturas estratégicas (portos, ferrovias) também são elementos-chave.
- Política: o Oriente Médio é um palco onde se confrontam diferentes modelos de governança e ideologias. A competição por influência política regional entre Irã e Arábia Saudita, muitas vezes com conotações sectárias, se reflete em conflitos por procuração. China e Rússia buscam desafiar a hegemonia tradicional dos EUA, promovendo uma ordem multipolar e fortalecendo laços com regimes autocráticos.
- Militar: a região é um dos maiores importadores de armamentos do mundo. A presença militar de potências como EUA, Rússia e Turquia sublinha o caráter altamente militarizado da geopolítica local. A proliferação de mísseis, drones e tecnologias de vigilância intensifica a corrida armamentista e a capacidade de projeção de força.
- Psicossocial: a herança colonial, a percepção de injustiça (especialmente em relação à questão palestina) e a polarização sectária alimentam narrativas de ressentimento e radicalização. O fundamentalismo religioso e os movimentos nacionalistas se aproveitam dessas fissuras para mobilizar populações, enquanto a propaganda e a desinformação se tornam ferramentas poderosas na disputa por corações e mentes.
- Científico-Tecnológica: a corrida para o desenvolvimento de tecnologias militares avançadas (cibersegurança, inteligência artificial aplicada à defesa, sistemas de mísseis), o investimento em energias renováveis e a busca por liderança em setores como a biotecnologia mostram uma dimensão tecnológica crescente. As potências regionais, com apoio externo, investem pesadamente em suas capacidades tecnológicas para fins militares e de segurança, mas também buscam diversificar suas economias, reduzindo a dependência de hidrocarbonetos.
O Acordo Sykes-Picot, ainda que seja um documento de um passado distante, não é uma mera curiosidade histórica. Ele é um lembrete vívido de como decisões tomadas em gabinetes distantes, com base em interesses estatais, ganância e uma profunda ignorância das realidades locais, podem moldar o destino de regiões inteiras por mais de um século. Também é considerado por muitos como o germe da fragmentação e do ressentimento que moldam o Oriente Médio moderno, plantando as sementes de futuros conflitos muito antes da derrota do Império Otomano.
A persistência da influência do Acordo Sykes-Picot é evidente na ascensão e fortalecimento de grupos como o Hezbollah, o Hamas e a própria OLP, que são manifestações de aspirações nacionais e ressentimentos contra as fronteiras artificiais e a dominação externa. Da mesma forma, as complexas rivalidades regionais, como as tensões entre Arábia Saudita versus Irã e entre Israel versus Irã, são intrinsecamente ligadas a esse legado, revelando a continuidade de disputas por influência e segurança em um cenário geopolítico fragmentado.
Para que o Oriente Médio encontre um caminho para a paz, é crucial que se reconheça e se compreenda a herança do Acordo Sykes-Picot, buscando soluções que superem as divisões artificiais e abordem as legítimas aspirações de seus povos, enquanto se navega na complexa teia de interesses econômicos, políticos, militares, psicossociais e científico-tecnológicos das grandes potências que continuam a moldar a região.
(*) Coronel de Infantaria e Estado-Maior Veterano do Exército Brasileiro. Graduado em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Especialista em Política, Estratégia e Alta Administração. Mestre em Operações Militares. Foi analista do Centro de Inteligência do Exército e Chefe da Seção de Inteligência do Comando Millitar do Planalto (Brasília/DF) e do Comando Militar da Amazônia (Manaus/AM). Atuou como Analista de Inteligência durante a Operação de Pacificação da Favela da Maré (Rio de Janeiro/RJ). Foi Comandante do 28º Batalhão de Infantaria Leve (Campinas/SP) e Subdiretor de Controle de Efetivos e Movimentações (Brasília/DF). Linkedin : https://www.linkedin.com/in/kristian-carlos-silva-amazonas-229558148/
Meu amigo, mais uma vez muito obrigado por compartilhar generosamente, mais um artigo em seu espaço Geopolítico. Fraterno abraço. Antes de tudo, Inteligência!