A nova Rota da Seda: o xeque-mate chinês e o desafio à liberdade global

Krístian Carlos Silva Amazonas*

Após passar o comando do 28º Batalhão de Infantaria Mecanizado em dezembro de 2018, realizei, em 2019 o Curso de Política, Estratégia e Alta Administração do Exército (CPEAEx) na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Nesse mesmo ano, em paralelo ao CPEAEx, juntamente com todos os alunos dos Cursos de Altos Estudos em Política e Estratégia das três Forças Singulares e da Escola Superior de Guerra (ESG), realizei o Curso Superior de Defesa (CSD) na ESG. 

Durante as aulas do CSD, sempre me chamava a atenção o fato de que, independentemente do assunto da aula ou da autoridade palestrante, havia um aluno civil de origem sino-brasileira que sempre realizava uma pergunta contextualizada ao tema da aula, sobre a Nova Rota da Seda. A partir dali, esse assunto entrou em minha mente como uma necessidade pessoal de estudar sobre o assunto.

EUA X China

A Antiga Rota da Seda, muito mais que uma trilha comercial, foi o sistema circulatório da geopolítica antiga, conectando impérios, difundindo culturas e consolidando poder. Hoje, a história se repete, mas com proporções e ambições inéditas. A China resgata esse legado com a “Iniciativa Cinturão e Rota” (Belt and Road Initiative ou BRI, na sigla em inglês), um projeto que transcende a economia para se tornar o cerne de seu projeto de Estado, de transformar o país na potência hegemônica do século XXI.

Lançada em 2013, a BRI é o mais audacioso experimento geoeconômico da história contemporânea. Com investimentos que superam US$ 1 trilhão e alcance em 150 países, seu objetivo é claro : reescrever as regras do poder global. Na nova geografia da BRI, ferrovias de alta velocidade cortam a Eurásia e portos estratégicos são controlados por empresas chinesas. As mercadorias também se modernizaram: a China exporta tecnologia 5G, painéis solares e trens de alta velocidade, enquanto o mundo fornece petróleo, gás natural, minérios raros e mercados para internacionalizar o Yuan.

Para sustentar essa gigantesca teia, Pequim mobiliza um arsenal integrado de ferramentas, divididas em cinco pilares estratégicos:

  • Pilar Econômico: o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), com US$ 100 bilhões, financia estradas e portos de Jacarta a Budapeste. A estratégia inclui a internacionalização do Yuan e empréstimos que atrelam dívidas a ativos estratégicos, como o porto de Hambantota no Sri Lanka.
  • Pilar Militar: uma base naval em Djibuti, no Chifre da África, patrulha rotas marítimas vitais. Porta-aviões como o Shandong dissuadem rivais no Indo-Pacífico e a venda de drones a países como Paquistão e Arábia Saudita consolida alianças.
  • Pilar Tecnológico: o cabo submarino PEACE estende fibra óptica da China à Europa e África, reduzindo a dependência de redes ocidentais. A Huawei domina 70% do mercado 5G em países da BRI e sistemas de vigilância de cidades inteligentes são exportados.
  • Pilar Psicossocial: Institutos Confúcio, com 500 centros globais1, promovem a cultura e a língua chinesa. A narrativa de “ganha-ganha” domina a propaganda estatal, enquanto críticas à BRI são censuradas.
  • Pilar Político-Diplomático: Fóruns anuais da BRI reúnem 140 países para definir padrões globais. Alianças com a Rússia e nações do Sul Global corroem a influência ocidental na ONU e OMC.

A Encruzilhada da Hegemonia: China Comunista versus a Liberdade Ocidental

A Iniciativa Cinturão e Rota não é meramente um projeto de infraestrutura : é o veículo para a hegemonia chinesa. Suas consequências já redefinem o tabuleiro global. A China busca controlar rotas críticas de energia, dados e comércio, diminuindo a dependência de gargalos como o Estreito de Malaca2. No entanto, esse avanço não vem sem riscos sistêmicos, como dívidas insustentáveis em países como Paquistão e Laos.

É nesse ponto que entra em cena o papel crucial dos Estados Unidos da América. Washington e seus aliados veem a BRI como uma ameaça direta à ordem internacional liberal, liderada pelo Ocidente desde o pós-Segunda Guerra Mundial. A resposta americana se manifesta em várias frentes:

  • Econômica: os EUA contra-atacam com iniciativas como a Parceria Global para Infraestrutura (PGII), com um aporte de US$ 600 bilhões, além de sanções a empresas chinesas, como a Huawei, buscando fragmentar cadeias produtivas via friend-shoring3.
  • Militar: as tensões militares escalam no Indo-Pacífico. A expansão chinesa de bases no Índico confronta alianças ocidentais como a QUAD (Diálogo Quadrilateral de Segurança) e a AUKUS (aliança militar tripartite formada pela Austrália, Reino Unido e Estados Unidos), militarizando rotas como o Estreito de Taiwan.
  • Tecnológica: a guerra tecnológica se manifesta na batalha por semicondutores, os EUA restringem exportações de chips, enquanto a China investe massivamente em autossuficiência, arriscando uma divisão global de padrões (5G vs. 6G).
  • Psicossocial e Diplomática: a China vende “desenvolvimento sem interferência”, enquanto os EUA alertam para “armadilhas da dívida”, fazendo o Sul Global oscilar entre modelos. Geopoliticamente, a BRI atrai países como Arábia Saudita e Sérvia, minando sistematicamente a influência ocidental.

A Nova Rota da Seda acelerou a erosão da liderança ocidental. Tecnologia, finanças e normas chinesas competirão frontalmente com padrões euro-americanos, empoderando o Sul Global. Em um mundo à beira de uma nova Guerra Fria, a BRI é o tabuleiro onde se joga o futuro. O veredito final é que, embora os EUA contra-ataquem, a BRI já é irreversível. A China aposta que a BRI fará pelo século XXI o que o Plano Marshall fez pelo XX, estruturando um mundo sob sua liderança. No entanto, os EUA não capitularão. A pergunta que resta não é se haverá conflito, mas quem pagará o preço mais alto nessa partida pelo domínio global.

A manutenção do Estado Democrático de Direito, da liberdade de expressão, do livre comércio e de direitos trabalhistas internacionais, garantindo mão de obra regulamentada e devidamente remunerada, para um mundo livre, justo, harmônico e de coexistência pacífica, depende fundamentalmente de como esse embate geopolítico se desenrolará. O futuro da multipolaridade está sendo escrito agora, nos trilhos e cabos submarinos dessa nova rota, que mais do que mercadorias, carrega o destino de uma superpotência determinada a escrever seu nome na história. 

Nesse contexto, a citação do Chanceler Chinês, Wang Yi, resume a essência da disputa: “A Rota da Seda nunca foi sobre camelos ou contêineres, mas sobre quem controla os fluxos que movem o mundo. Hoje, a China segura o leme”.

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Até breve !

(*) Coronel de Infantaria e Estado-Maior Veterano do Exército Brasileiro. Graduado em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Especialista em Política, Estratégia e Alta Administração. Mestre em Operações Militares. Foi analista do Centro de Inteligência do Exército e Chefe da Seção de Inteligência do Comando Millitar do Planalto (Brasília/DF) e do Comando Militar da Amazônia (Manaus/AM). Atuou como Analista de Inteligência durante a Operação de Pacificação da Favela da Maré (Rio de Janeiro/RJ). Foi Comandante do 28º Batalhão de Infantaria Leve (Campinas/SP) e Subdiretor de Controle de Efetivos e Movimentações (Brasília/DF). Linkedin : https://www.linkedin.com/in/kristian-carlos-silva-amazonas-229558148/

1. O primeiro Instituto Confúcio no Brasil foi estabelecido na Universidade Estadual Paulista (UNESP) de São Paulo, em 2008. Além da UNESP, outras universidades brasileiras abrigam Institutos Confúcio: Universidade de Brasília (UnB) em Brasília, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) no Rio de Janeiro, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Belo Horizonte, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em Porto Alegre, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em Campinas, Universidade Federal da Bahia (UFBA) em Salvador, Universidade Federal do Ceará (UFC) em Fortaleza, Universidade Federal de Goiás (UFG), que abriga o primeiro Instituto Confúcio de Medicina Tradicional Chinesa da América Latina, Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em Manaus, Universidade Federal do Maranhão (UFMA) em São Luís, Universidade do Estado do Pará (UEPA) em Belém, Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro.

2. Conheça mais sobre os Pontos de Estrangulamento Globais : https://www.geopoliticando.com.br/2025/05/31/choke-points/

3. Friend-shoring é uma estratégia de gestão da cadeia de suprimentos que prioriza a fabricação e o fornecimento de produtos em países que são aliados geopolíticos, ou seja, que compartilham os mesmos valores políticos, sistemas econômicos compatíveis e relações diplomáticas estáveis. Ao contrário do offshoring tradicional, que busca apenas a eficiência de custos (como mão de obra barata), o friend-shoring enfatiza a segurança e a resiliência das cadeias de suprimentos. Essa abordagem ganhou força nos últimos anos devido a crises globais como a guerra comercial EUA-China, a pandemia de COVID-19 e conflitos geopolíticos, que evidenciaram a vulnerabilidade de depender excessivamente de um único país ou de parceiros instáveis. Os principais objetivos do friend-shoring são: reduzir riscos geopolíticos, para evitar interrupções na cadeia de suprimentos causadas por sanções econômicas, conflitos ou mudanças políticas abruptas em países não aliados; aumentar a confiabilidade, buscando trabalhar com parceiros previsíveis e estáveis; fortalecer relações comerciais, ao promover acordos mais estáveis e benéficos com países amigos; garantir a consistência de valores, priorizando parceiros que compartilham princípios como instituições democráticas e proteção de direitos humanos. Embora o friend-shoring ofereça maior segurança e estabilidade, ele pode, em alguns casos, levar a custos de produção mais elevados e a desafios logísticos, caso os países aliados não ofereçam os mesmos benefícios de custo ou proximidade de mercados que os parceiros tradicionais.

6 comentários em “A nova Rota da Seda: o xeque-mate chinês e o desafio à liberdade global”

  1. Krístian Carlos Silva Amazonas

    Amigo Sberni, é sempre um prazer ver um artigo meu publicado em seu Site especializado em Geopolítica. Mais uma vez agradeço sua generosidade..

    1. Agradeco pelo texto extremamente esclarecedor, caro Cel Amazonas. A título de curiosidade, gostaria de entender: existe ligação ao dito com? 1) Porto recém construído no Peru, bem com a base Militar naquele país; 2) A importância do Canal do Panamá no contexto dessa geopolítica.

      1. KRISTIAN CARLOS SILVA AMAZONAS

        Prezado Gilberto Cunha, obrigado pela leitura do Artigo. Em resposta a sua pergunta, o Porto de Chancay, no Peru, é um projeto chinês essencial da “Iniciativa Cinturão e Rota” (Belt and Road Initiative) são os tentáculos da Nova Rota da Seda Chinesa na América do Sul, visando otimizar o comércio, permitindo que navios maiores ignorem o Canal do Panamá e reduzindo o tempo de transporte entre Ásia e América do Sul em até 20 dias, fortalecendo a influência econômica chinesa na região. A importância do Canal do Panamá é de fato geopolítica e estratégica, já antevendo essa postura norte-americana, o que é natural e totalmente compreensível, a China concebeu em 2013, um projeto de um canal interoceânico na Nicarágua que visava ser uma alternativa ao Canal do Panamá, chegou a ter uma inauguração simbólica em 2014, mas foi cancelado em 2024. Ele enfrentou enormes controvérsias ambientais (especialmente sobre o Lago Nicarágua), financeiras (falta de transparência e viabilidade duvidosa) e sociais/políticas (desapropriação de terras e protestos violentos). Após anos de inação e pressão, a concessão foi revogada em 2024, encerrando o controverso megaprojeto. Espero ter te respondido.

  2. Excelente artigo Cel Amazonas. Equilibrado, contextualizado e preciso nas análises. Uma aula tanto para quem tem interesse no assunto como para àqueles que se iniciam no tema.
    Forte abraço

    1. KRISTIAN CARLOS SILVA AMAZONAS

      Muito obrigado pela leitura e comentário, meu amigo. Sua opinião sempre será muito importante e muito bem-vinda.

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