Rafael Cunha de Almeida*
As imagens recentes exibidas em desfiles militares na China não são apenas demonstrações de poderio bélico, mas comunicações estratégicas dirigidas ao mundo. O conjunto de sistemas apresentados — desde lançadores múltiplos de foguetes de longo alcance, passando por mísseis balísticos intercontinentais até veículos não tripulados aéreos e submarinos — compõe o mosaico de uma política de defesa que se consolidou ao longo das últimas décadas. Essa política articula duas diretrizes centrais: a negação de área (A2/AD, Anti-Access/Area Denial) e a capacidade de contra-atacar diretamente a partir da origem da ameaça.
Contexto histórico: da defesa ativa ao A2/AD
A doutrina militar chinesa tem raízes na ideia de “defesa ativa”, formulada desde Mao Tsé-tung e reinterpretada a partir dos anos 1980, especialmente após a modernização impulsionada por Deng Xiaoping. Diferentemente da postura puramente reativa, a defesa ativa pressupõe que, diante de uma ameaça externa, a China poderia não apenas defender-se, mas também golpear as forças adversárias para desestabilizar sua capacidade ofensiva.

A partir dos anos 1990, com a Guerra do Golfo e a superioridade tecnológica norte-americana amplamente exibida, Pequim percebeu a urgência em modernizar suas forças. Foi nesse cenário que emergiu a noção de A2/AD: impedir ou dificultar o acesso de potências rivais — em especial os Estados Unidos e seus aliados — a áreas estratégicas próximas ao território chinês, como o Mar do Sul da China e o Estreito de Taiwan.
Os sistemas apresentados: negação de espaço em várias dimensões
Artilharia de longo alcance e mísseis balísticos: os lançadores múltiplos de foguetes e o míssil intercontinental Dom Feng 5C, capaz de carregar múltiplas ogivas, mostram o poder dissuasório chinês. A lógica é clara: não apenas atingir forças invasoras, mas também ter a possibilidade de retaliar contra centros estratégicos a milhares de quilômetros de distância.
Capacidades submarinas autônomas: veículos não tripulados submarinos, com potencial para lançar minas navais, reforçam a dimensão marítima da negação de área. O recado é que navios inimigos enfrentariam obstáculos significativos caso tentassem se aproximar do litoral chinês.
Armas de energia dirigida: montadas em plataformas móveis, indicam um esforço em neutralizar mísseis e foguetes antes que atinjam alvos no território nacional.
Veículos aéreos não tripulados (UAVs ou drones): organizados em três funções — reconhecimento, ataque a alvos terrestres e marítimos, e interceptação aérea —, compõem um sistema integrado que amplia a capacidade de monitorar, negar acesso e reagir.
Mísseis de cruzeiro YJ-15: projetados para destruir navios a longa distância, completam o quadro de defesa marítima e reforçam a mensagem de que forças navais rivais não podem operar livremente na região.
A mensagem política e simbólica
Ao exibir essa diversidade de sistemas no mesmo desfile, a China projeta uma imagem de integração. A defesa não se baseia mais em forças isoladas, mas em um conjunto coordenado de tecnologias que operam em terra, mar, ar e até no espaço cibernético.
A escolha da data — os 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial e da invasão japonesa ao território chinês — carrega forte simbolismo. O subtexto é de soberania: a China atual, ao contrário da fragilizada potência invadida no século XX, agora tem meios próprios para se proteger sem depender de aliados externos.
Contrapontos: limites e desafios
Apesar da sofisticação tecnológica e do simbolismo estratégico, é preciso relativizar algumas das mensagens transmitidas:
Armas ainda não testadas em combate – grande parte dos sistemas exibidos, como armas de energia dirigida e UAVs de interceptação aérea, nunca foi empregada em cenários de guerra real. Isso gera dúvidas sobre sua eficácia operacional em situações de alta pressão. Diferentemente de armamentos ocidentais ou russos, que foram validados em conflitos recentes, muitos equipamentos chineses ainda estão na esfera de demonstração.
Novidade tecnológica não garante maturidade – o Dom Feng 5C e os UAVs de grande porte impressionam pela capacidade declarada, mas carecem de comprovação prática. Em contextos de guerra, falhas técnicas ou limitações logísticas podem reduzir seu impacto.
Quantidade relativa – embora a China possua um dos maiores arsenais do mundo em termos absolutos, a comparação com os EUA e a Rússia mostra desvantagens. Os EUA mantêm centenas de ogivas nucleares ativas e uma frota naval globalmente distribuída, enquanto a Rússia conserva um estoque nuclear ainda maior e sistemas balísticos com décadas de testes. A China, em contraste, está em fase de expansão: cresce rapidamente, mas ainda não iguala em escala nem em experiência operacional seus principais rivais.
Esses contrapontos não anulam a importância da modernização chinesa, mas indicam que o desfile é também uma demonstração de intenções e projeção política, tanto quanto uma exibição de força efetiva.
Conclusão: a consolidação de uma estratégia em construção
O desfile e as imagens associadas não são apenas demonstrações técnicas, mas declarações políticas. Eles sinalizam ao mundo que a estratégia chinesa de defesa — centrada no A2/AD e na capacidade de contra-ataque — está consolidada. Mais que isso, revelam que Pequim se vê agora em posição de afirmar sua soberania militar diante de potenciais ameaças, afastando de vez a imagem de dependência que marcou parte de sua história contemporânea.
Contudo, a consolidação é também uma construção narrativa. A China mostra que tem ambição e meios para negar acesso ao seu entorno estratégico e retaliar contra adversários, mas a eficácia real dessas armas dependerá de cenários que ainda não foram testados. O contraste entre quantidade, experiência e maturidade tecnológica frente a EUA e Rússia mostra que, embora tenha avançado de maneira impressionante, a China ainda percorre um caminho de afirmação no campo da defesa global.
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(*) Coronel de Cavalaria e Estado-Maior. Bacharel em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Licenciado em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. . Mestre em Estratégias de Defesa pela National Defense University, Beijing (China). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi Oficial de Ligação das Nações Unidas no Sudão do Sul durante a Guerra Civil (2013-2014). Foi Chefe da Seção de Política e Estratégia da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e Comandante do 3º Regimento de Cavalaria Mecanizado (Bagé/RS). Linkedin : https://www.linkedin.com/in/rafael-almeida-052a1743/
Sobre o tema, assista a participação do Coronel Rafael Cunha de Almeida no Canal UOL : https://www.uol.com.br/flash/?c=8bbbbec1359539fa932ef8ca8649466b20250905
Brilhante e esclarecedor o artigo. Parabéns.