Rafael Cunha de Almeida*
A geopolítica do Norte da África ocupa um papel central na configuração do sistema internacional contemporâneo. Entre o Atlântico, o Mediterrâneo e o deserto do Saara, essa região — que inclui Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito, além da faixa de transição do Sahel — constitui uma ponte e, ao mesmo tempo, uma zona de fricção entre Europa, Oriente Médio e África Subsaariana.
O Norte da África controla alguns dos principais “choke points1”, pontos de estrangulamento marítimo do planeta. O Estreito de Gibraltar conecta o Atlântico ao Mediterrâneo e define o acesso ao comércio europeu; o Canal de Suez, sob domínio egípcio, é um elo vital entre o Mar Vermelho e o Mediterrâneo; e o Golfo de Sirte, na Líbia, marca a intersecção entre rotas energéticas e estratégicas. Esses corredores fazem da região uma plataforma geoestratégica indispensável tanto para o fluxo de mercadorias quanto para o controle militar global.
O Sahel é uma faixa de transição geográfica e climática localizada entre o deserto do Saara, ao norte, e as savanas tropicais da África Subsaariana, ao sul. Estende-se de oeste a leste do continente africano, do oceano Atlântico (na Mauritânia e no Senegal) até o mar Vermelho (no Sudão e na Eritreia), abrangendo países como Senegal, Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger, Chade e Sudão — e, em alguns contextos, partes do norte da Nigéria e do sul da Argélia. Geograficamente, é uma zona semiárida, com chuvas escassas e irregulares, marcada por desertificação e vulnerabilidade ambiental. Culturalmente, funciona como uma ponte entre o mundo árabe-islâmico do Norte e o africano subsaariano, misturando tradições, línguas e religiões.

Politicamente, o Sahel é uma das regiões mais instáveis do planeta, afetada por golpes militares, insurgências jihadistas e crises humanitárias que refletem em movimentos migratórios. Do ponto de vista geopolítico, o Sahel é uma zona de contato e disputa entre potências externas. A região é hoje palco de uma nova corrida por influência que a tem tornado palco de olhares e atuações exógenas.
A partir dos anos 1990, a OTAN alargou sua zona de influência com o conceito de “Mediterrâneo Ampliado”, integrando o Norte da África em sua agenda de segurança. Iniciativas como a “Operação Active Endeavour” e a intervenção na Líbia em 2011 mostram essa expansão. A União Europeia, por sua vez, articula a Parceria Euro-Mediterrânica, vinculando segurança, energia e controle migratório. O Norte da África tornou-se, assim, fronteira externa da Europa: espaço de contenção de fluxos migratórios vindos do Sahel e porta de entrada para refugiados do Oriente Médio.
A Primavera Árabe deixou marcas profundas. O Egito reafirmou-se como ator central, controlando o Suez e buscando equilíbrio entre estabilidade autoritária e legitimidade internacional. A Líbia permanece um Estado fragmentado, dividida entre governos rivais e milícias apoiadas por potências externas — um fracasso simbólico das missões da ONU (UNSMIL). A Argélia, por sua vez, sustenta relativa autonomia e poder energético, fornecendo gás à Europa em tempos de guerra na Ucrânia e transição verde.
A guerra na Ucrânia reconfigurou prioridades. A Europa busca fontes alternativas de energia no Norte da África, enquanto o Sahel torna-se campo de disputa entre Ocidente e Rússia. A crise de grãos, a insegurança alimentar e os fluxos migratórios ampliaram a interdependência euro-africana. O ressentimento anticolonial e o discurso soberanista ganham força, transformando o Sahel em laboratório de novos alinhamentos. As rotas de migração — do Níger à Líbia e daí ao Mediterrâneo — continuam sendo vetor de pressão política e humanitária sobre a Europa e, trazendo a Turquia ao cenário do embate entre as discussões sobre migrações e segurança.
A França atuou na região do Norte da África e Sahel no combate ao terrorismo, mas sua influência tem diminuído após uma série de golpes de Estado e reações à permanência de vínculos mesmo após os movimentos de libertação colonial. A antiga potência colonial, perdeu espaço após os sucessivos golpes militares no Sahel — especialmente no Mali, Níger e Burkina Faso —, onde o ressentimento contra o intervencionismo francês abriu espaço para novos atores.
A Rússia preencheu esse vácuo, utilizando o Grupo Wagner para oferecer segurança, treinamento e exploração de recursos, em especial mineração de ouro em Burkina Faso e no Mali. Essa presença combina pragmatismo econômico e influência política, substituindo os antigos laços coloniais por parcerias militares e extrativistas, e que tem gerado reações ocidentais por ter se tornado uma opção para o financiamento da guerra na Ucrânia face aos bloqueios econômicos sofridos pela Rússia, enquanto os Estados Unidos, China e Turquia também competem por influência regional, seja em segurança, infraestrutura ou comércio.
Politicamente, o Norte da África oscila entre duas pertenças: a Liga Árabe e a União Africana (UA). O Egito é o melhor exemplo dessa dupla inserção, atuando como pivô entre os dois mundos- e isso não é de hoje, o que reforça a importância dos estudos históricos como uma das melhores lentes para a compreensão geopolítica- afinal os gregos na antiguidade já se referiam ao Egito como “ a esquina do mundo”. A Liga Árabe, com forte protagonismo egípcio e líbio, busca afirmar uma identidade árabe comum, mas enfrenta tensões internas e concorrência da UA. Essa disputa institucional revela a dificuldade de articular uma agenda regional autônoma frente às potências externas e às crises domésticas pós-Primavera Árabe.
A China investe na infraestrutura e no comércio via Iniciativa Cinturão e Rota2 (BRI), fortalecendo o eixo marítimo e terrestre que liga o Mediterrâneo à África Oriental, e a Turquia, por sua vez, articula uma política de poder médio, combinando discurso islâmico, ajuda humanitária e presença militar no Mediterrâneo e na Líbia.
O Norte da África sintetiza as tensões do século XXI: energia, segurança, identidades e migrações. É plataforma de projeção da OTAN, vitrine da competição sino-russa e porta de saída da África para a Europa. O conceito de “mediterrâneo ampliado” simboliza esse entrelaçamento, no qual o controle das fronteiras e dos recursos energéticos se confunde com o exercício de poder global.
Em síntese, o Sahel é tanto um corredor estratégico quanto um epicentro de crises. Ele conecta o Norte da África ao restante do continente e expressa, em escala reduzida, as grandes tensões do século XXI: mudanças climáticas, competição por recursos, terrorismo transnacional e ressurgimento de rivalidades globais.
Compreender a importância geopolítica do Norte da África no sistema internacional, analisando sua inserção estratégica no Mediterrâneo, no Sahel e no mundo árabe passa por entender a extensão dos interesses europeus e do Oriente na região e os impactos das suas dinâmicas internas na geopolítica mundial.
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(*) Coronel de Cavalaria e Estado-Maior. Bacharel em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Licenciado em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. . Mestre em Estratégias de Defesa pela National Defense University, Beijing (China). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi Oficial de Ligação das Nações Unidas no Sudão do Sul durante a Guerra Civil (2013-2014). Foi Chefe da Seção de Política e Estratégia da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e Comandante do 3º Regimento de Cavalaria Mecanizado (Bagé/RS). Linkedin : https://www.linkedin.com/in/rafael-almeida-052a1743/
1 Saiba mais sobre os Choke Points : https://www.geopoliticando.com.br/2025/05/31/choke-points/
2 Saiba mais sobre a Iniativa Cinturão e Rota (BRI): https://www.geopoliticando.com.br/2025/07/12/nova-rota-da-seda/

Ótimo artigo! A disputa geopolítica entre EUA, China e outros atores colonialistas como a França, vão se acirrar na África, que se apresenta como um novo produtor de alimentos e muita riqueza mineral. Matéria prima muito importante para produzir equipamentos tecnológicos que interessam aos países mais avançados.
Excelente artigo!
Concomitantemente, esta análise sobre aspectos históricos, geográficos e geoestratégicos da região do Sahel, permite ao leitor ter uma visão atual sobre quais são alguns dos temas relevantes, no contexto do “tabuleiro” internacional.
Excelente análise sobre a centralidade geopolítica do Norte da África e do Sahel no cenário internacional. O texto articula com profundidade os vetores estratégicos — energia, segurança, migração e identidade — que tornam a região um verdadeiro epicentro das tensões globais. A abordagem histórica e a leitura das dinâmicas contemporâneas revelam como esse espaço é chave para entender os novos alinhamentos do século XXI. Parabéns Rafael, profundo conhecedor do continente africano. Vamos juntos!
Gostei muito do artigo. O Norte da África e o Sahel formam um eixo geoestratégico vital que conecta Europa, Oriente Médio e África Subsaariana, concentrando disputas por energia, migração e segurança. O conceito de “Mediterrâneo Ampliado” reflete essa interdependência, onde potências globais competem por influência em meio a instabilidade política e rivalidades regionais. Obrigado pelo conhecimento repassado.