Alessandro Sberni*
O espaço geográfico onde se localiza o território da Turquia é “suis generis”: situado entre dois continentes (Ásia e Europa) e constituindo-se em uma ponte entre diferentes culturas, civilizações e rotas comerciais. O domínio de importantes choke points1 como os estreitos de Bósforo e Dardanelos no Mar Negro confere ao país uma posição geoestratégica de destaque no contexto global.
Não por acaso, o território da Turquia, ao longo da história, tem sido o centro de disputas entre impérios, tensões estratégicas e de confluências religiosas, o que moldou sua identidade nacional e sua relação com os demais Estados. Nas últimas décadas, a Turquia tem procurado se consolidar como uma potência regional média, buscando projetar seu poder e influenciar seus vizinhos em sua área de interesse.
O DILEMA DA IDENTIDADE: A HERANÇA OTOMANA
Para se compreender a Turquia moderna, é fundamental que se visualize a importância do Império Otomano, uma potência que ao longo de aproximadamente seis séculos (1299-1922) dominou vastas porções da Europa, Ásia Central, Oriente Médio e Norte da África. Essa “herança” e a lembrança de um passado de glória, constitui-se no combustível da ambição da Turquia atual em se constituir em uma Potência Regional, com condições de influenciar seus “círculos” de vizinhos, nos Balcãs, Cáucaso, Mar Negro e também no Oriente Médio.

A queda do Império Otomano em 1922 e a consequente fundação da República da Turquia por Mustafa Kemal Atatürk no ano seguinte marcou uma ruptura radical com o passado. O projeto kemalista foi caracterizado pela imposição da ocidentalização e da secularização do país, rejeitando o califado como forma de buscar alinhar a Turquia aos padrões ocidentais. Esse contexto criou na Turquia um “dilema de identidade” que perdura até os dias de hoje: como ser uma nação moderna, laica e “europeia”, e ao mesmo tempo enraizada com profundos laços com o mundo islâmico e com o mundo turcófono ?
POLÍTICA EXTERNA: AMBIGUIDADE E PROFUNDIDADE ESTRATÉGICA2
Desde 2003, sob o governo de Recep Tayyip Erdoğan, a política externa turca tem se caracterizado pela busca da ampliação de sua profundidade estratégica. Diante disso, a Turquia tem procurado aumentar a sua influência no seu entorno, ao mesmo tempo em que busca fortalecer seus dados com o Ocidente.
As relações com a União Europeia são ambíguas e repletas de “altos e baixos”. A Turquia é membro da OTAN3 desde 1952 e desde 1999 é candidata a integrar o Bloco Europeu. No entanto, a entrada do país na União Europeia encontra resistências de diversos membros do bloco (como a Grécia) , principalmente por questões ligadas aos direitos humanos, à democracia e à questão do Chipre.
A relação da Turquia com a Rússia também é ambígua e complexa. Ambos os países são rivais históricos e com interesses divergentes em seu entorno, mas mantém estreita cooperação em diversos setores, como o setor energético (destaque para o gasoduto TurkStream) e o setor de defesa, ainda que a Turquia seja membro da OTAN. Por outro lado, Turquia e Rússia encontram-se em lados opostos em conflitos regionais como na Síria, na Líbia e, mais recentemente, na Ucrânia, caracterizando uma relação de competição e cooperação entre as duas nações.
FOCOS DE ATENÇÃO GEOPOLÍTICA
A conjuntura atual é desafiadora para as pretensões geopolíticas da Turquia e para a sua ambição de tornar-se uma Potência Regional e também um ator relevante no cenário mundial. Em virtude de sua localização geográfica e das tensões existentes no seu entorno, a Turquia possui alguns aspectos que merecem ser permanentemente avaliados com atenção:
- Controle dos estreitos de Bósforo e Dardanelos: esses estreitos ligam o Mar Negro (e portanto a Rússia, a Romênia, a Ucrânia, a Bulgária e a Geórgia) ao Mar Mediterrâneo. A Convenção de Montreux (1936) confere à Turquia plenos poderes sobre a utilização da rota por navios mercantes e navios de guerra. O controle efetivo dos dois estreitos e dessa rota, talvez seja o maior foco de atenção geopolítica da Turquia.
- A questão do Chipre: a Turquia ocupa o norte do Chipre desde 1974, quando invadiu a ilha, que pretendia unir-se à Grécia. Esse conflito territorial ainda latente é um dos principais obstáculos para a entrada da Turquia na União Europeia e representa uma tensão constante com a Grécia, notadamente no que diz respeito à exploração de gás natural no Mediterrâneo.
- A questão Curda: os curdos são considerados o maior povo sem Estado do mundo, vivendo em uma região que abrange parte dos territórios da Turquia, Iraque, Irã e Síria, onde buscam obter um território autônomo. Na Turquia, os curdos se organizam ao redor do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que é considerado uma organização terrorista pelo governo turco, que reprime fortemente o PKK e seus aliados tanto em território turco como também em operações militares no norte do Iraque e no norte da Síria. Esse combate às forças curdas se constituem em um foco de tensão com os Estados Unidos, uma vez que milícias curdas são aliadas dos norte-americanos no combate ao Estado Islâmico (ISIS).
O PODER MILITAR E A PROJEÇÃO REGIONAL
A Turquia possui a segunda maior Forças Armadas da OTAN (atrás apenas dos Estados Unidos), com um efetivo de aproximadamente 355 mil militares. Os turcos tem procurado aumentar a projeção de seu poder militar por intermédio da instalação e operação de bases militares no Chipre, Catar, Somália e Azerbaijão. Seu envolvimento em conflitos como o da Síria, onde combateu tanto forças curdas como forças jihadistas demonstram sua determinação de manter o seu entorno estratégico sob controle e em relativa segurança.
Além disso, a Turquia também tem procurado ampliar sua influência tanto em direção à África como em direção à Ásia Central. Nesse contexto, produtos de sua Base Industrial de Defesa como o drone Bayraktar TB2 tem sido amplamente exportado para diversos países, constituindo-se em relevante instrumento de sua diplomacia militar.
CONCLUSÃO
A geopolítica da Turquia é fortemente influenciada pela sua posição geográfica, no encontro de continentes e de civilizações. Além disso, o controle de áreas estratégicas (Bósforo e Dardanelos) e a presença de grupos que potencialmente podem ameaçar a soberania de parte de seu território (curdos) também são fatores que possuem grande peso na “balança geopolítica” dos turcos.
Seus desafios geopolíticos para as próximas décadas não são triviais: manter as alianças tradicionais com o Ocidente, ampliar a sua relevância na OTAN, inserir-se na União Europeia, manter relações pragmáticas com a Rússia e ampliar o seu poder regional, sempre observando as suas questões internas. São desafios bastante complexos, o que torna a Turquia um dos mais interessantes atores geopolíticos para se estudar e observar nos próximos anos. A conferir.
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*) Coronel de Cavalaria e Estado-Maior Veterano do Exército Brasileiro. Graduado em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Administrador de Empresas e MBA em Gestão Financeira. Especialista em Bases Geohistóricas para Formulação Estratégica. Especialista em Altos Estudos de Defesa. Especialista em Análise de Inteligência Estratégica pelo Instituto de Inteligência das Forças Armadas Argentinas. Mestre em Operações Militares. Foi Assesssor-Chefe e analista do Centro de Inteligência do Exército . Foi instrutor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Foi Comandante do 5º Regimento de Cavalaria Mecanizado (Quaraí/RS). Linkedin : https://www.linkedin.com/in/alessandro-sberni-92a17aa9/
1 Saiba mais sobre os Choke Points: https://www.geopoliticando.com.br/2025/05/31/choke-points/
2 Saiba mais sobre o conceito de Profundidade Estratégica: https://www.geopoliticando.com.br/2025/09/06/profundidade-estrategica/
3 Saiba mais sobre a OTAN: https://www.nato.int/en

Amigo Sberni, ler seu artigo é viver a história Geopolítica. A Turquia, com sua localização estratégica entre Europa e Ásia e o controle dos estreitos de Bósforo e Dardanelos, é um ator geopolítico suis generis com grande relevância global. Sua política externa ambígua busca consolidar o país como potência regional, equilibrando a herança otomana com a ocidentalização kemalista, enquanto lida com as tensões entre a OTAN e a Rússia. O país enfrenta desafios complexos como a Questão Curda e o conflito de Chipre, cruciais para suas ambições de projeção de poder e inserção na UE. Obrigado pelo artigo e ensinamentos.
Muito bom trazer a dinâmica das relações de poder sob a perspectiva dos eixos mundiais além dos que costumam constar do senso comum .
Sobre refrências às questões históricas , lente importantíssima nos estudos de geopolítica, existe uma fonte que aprofunda as ligações do oriente e ocidente por meio do estudo da importância da região e suas conexões com a antiga rota da seda e sua atualidade.
É o livro “O coração do mundo”. Uma nova História universal a partir da rota da seda: o encontro do Oriente com o Ocidente, de Peter Frankopan