Kristian Carlos Silva Amazonas*
A geopolítica contemporânea é marcada por uma complexa multipolaridade baseada em uma complexa teia de rivalidades e interdependências, onde as grandes potências (Estados Unidos, China e Rússia) redefinem suas esferas de influência. Longe da linearidade otimista do “fim da história” proclamada por Francis Fukuyama, o cenário atual reflete uma história que não apenas persistiu, mas recrudesceu, moldada por disputas de poder, identidades culturais e diferentes modelos civilizacionais. A análise dessa conjuntura exige um olhar que transcende a superfície dos eventos, mergulhando nas profundas correntes históricas e teóricas que as sustentam.
O final do século XX e o início do XXI foram marcados por profundas transformações geopolíticas, ideológicas e culturais, analisadas sob diferentes prismas por pensadores como Francis Fukuyama1, Samuel Huntington2, Eric Hobsbawm3 e Serge Gruzinski4:
- Fukuyama, em ‘O Fim da História e o Último Homem’, propõe que a democracia liberal ocidental, liderada pelos Estados Unidos, teria triunfado como forma final de governo após a Guerra Fria.
- Huntington, por sua vez, em ‘O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial’, antevê um mundo pós-Guerra Fria fragmentado por linhas culturais e religiosas, colocando os EUA frente a desafios civilizacionais, especialmente com o mundo islâmico e com a China confucionista.
- Hobsbawm, em ‘A Era dos Extremos: O Breve Século XX (1914-1991)’, desconstrói essa narrativa ao evidenciar as contradições e desigualdades persistentes no “curto século XX”, marcado por guerras, revoluções e crise.
- Já Gruzinski, em ‘As Quatro Partes do Mundo: História de uma Mundialização’, adota uma perspectiva mais ampla e histórica da mundialização, ressaltando como o Ocidente moldou o globo através de práticas coloniais e culturais desde o século XVI, processo que prepara o terreno para o protagonismo atual não apenas dos EUA, mas também da China e da Rússia.
O Fim de Uma Ilusão: Fukuyama Revisitado

Publicado em 1992, no rescaldo da Guerra Fria, ‘O Fim da História e o Último Homem’ de Francis Fukuyama postulava o triunfo final da democracia liberal ocidental como o ponto culminante da evolução ideológica humana. Sua tese, inspirada em Hegel5, via o colapso do comunismo soviético como o selo da vitória do modelo liberal-capitalista. Contudo, as dinâmicas globais pós-1991 demonstraram que essa vitória ideológica aparente era uma ilusão.
A Rússia, sob Vladimir Putin, adotou uma postura revisionista, calcada em uma ideologia nacionalista-autocrática. A anexação da Crimeia pela Rússia em março de 2014, após um referendo considerado ilegal pela Ucrânia e pela comunidade internacional, bem como invasão da Ucrânia em 2022 é um exemplo contundente de que a história não só não terminou, como se intensificou, desafiando diretamente os valores liberais ocidentais e operando como uma força desestabilizadora na Europa e em outras regiões.
A China, por sua vez, emergiu como uma potência que, embora integrada ao sistema econômico global, mantém um modelo político distinto. A competição sistêmica com os Estados Unidos, especialmente no campo tecnológico, evidencia uma rivalidade de natureza geoestratégica, não ideológica, que refuta a ideia de um consenso liberal universal. O mundo, portanto, vive uma nova era de multipolaridade, onde EUA, China e Rússia disputam influências, desmentindo o inevitável fim progressista que Fukuyama havia imaginado.
O Choque de Civilizações: Huntington e as Linhas de Fratura
Enquanto Fukuyama vislumbrava um futuro de convergência liberal, Samuel P. Huntington, em ‘O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial’, ofereceu uma perspectiva mais sombria e culturalista para o cenário pós-Guerra Fria. Para Huntington, os conflitos futuros não seriam motivados por ideologias ou interesses econômicos, mas por profundas diferenças culturais entre civilizações, como a Ocidental, Chinesa e Ortodoxa (russa), seriam as principais unidades de identificação e, consequentemente, de conflito.
Essa tese é particularmente relevante para entender as tensões atuais. Os Estados Unidos representam o cerne da civilização Ocidental, enquanto a Rússia se posiciona como o centro da civilização Ortodoxa. A Ucrânia é descrita como uma “linha de fratura” entre essas duas civilizações. A ascensão da China é vista por Huntington como um desafio direto à ordem ocidental, com tensões potenciais entre a civilização Chinesa e seus vizinhos. A “linha de fratura” entre civilizações, onde os conflitos culturais e religiosos tendem a explodir, é uma lente poderosa para analisar as regiões de instabilidade geopolítica contemporânea.
A Era dos Extremos como Pano de Fundo Histórico
Eric Hobsbawm, em ‘A Era dos Extremos: O Breve Século XX (1914-1991)’, oferece o contexto histórico para entender o surgimento das teorias de Fukuyama e Huntington e a própria conjuntura atual. Sua análise do “breve século XX”, delimitado pela 1ª Guerra Mundial e o colapso da União Soviética, descreve um período de extremos violentos, avanços e catástrofes. A obra explora o impacto da Revolução Russa, o surgimento do fascismo, a Guerra Fria e o desmoronamento das grandes narrativas ideológicas.
Hobsbawm contextualiza o fim da bipolaridade ideológica (capitalismo versus comunismo), um evento central para as teses de Fukuyama e Huntington. Ele analisa as tensões e contradições internas tanto do capitalismo ocidental quanto do socialismo soviético, fornecendo uma base para entender as dinâmicas que levaram ao atual rearranjo de poder global.
As Raízes da Mundialização: Gruzinski e o Presente Enraizado no Passado
Serge Gruzinski, em ‘As Quatro Partes do Mundo: História de uma Mundialização’, oferece um contraponto crucial às narrativas eurocêntricas da globalização, ao demonstrar que a interconectividade global é um fenômeno antigo, multifacetado e que remonta aos séculos XVI e XVII, com a expansão ibérica. Embora o livro não trate diretamente dos Estados Unidos ou da China, ele fornece um arcabouço conceitual valioso para analisar as dinâmicas geopolíticas contemporâneas, enfatizando a complexidade das interações e a agência de povos não europeus.
A obra de Gruzinski é fundamental para compreender o lugar histórico da China como um centro civilizacional e econômico, com uma longa tradição de engajamento com o mundo em seus próprios termos. A atual posição da China como potência global ressoa com seu papel central nos fluxos econômicos dos séculos XVI e XVII. Sua iniciativa da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative) pode ser interpretada como uma herança e, ao mesmo tempo, uma competição com a lógica de mundialização retratada por Gruzinski, projetando influência por meio de infraestrutura, comércio, crédito e presença digital.
Para os Estados Unidos, o trabalho de Gruzinski ilumina as raízes coloniais e imperiais do sistema hemisférico em que emergiram e se expandiram. As estruturas de exploração, os fluxos transatlânticos e as dinâmicas de poder estabelecidas pelos ibéricos pavimentaram o caminho para a posterior formação e ascensão dos EUA. Assim, a disputa atual entre EUA e China é, em parte, um novo capítulo da mundialização em curso, enraizada em padrões estabelecidos no início da era moderna.
Um Mundo em Transformação Constante
Em síntese, os quatro autores, cada qual por caminhos distintos, convergem na percepção de que o mundo contemporâneo é fruto de forças históricas complexas e em disputa. Os Estados Unidos permanecem como ator central, seja como símbolo do liberalismo triunfante, potência hegemônica ou epicentro de resistência civilizacional. A Rússia, herdeira do império soviético, ressurge como polo contestador da ordem liberal ocidental, com pretensões de restaurar sua influência geopolítica. A China, por sua vez, emerge como alternativa civilizacional e econômica, desafiando a hegemonia norte-americana e encarnando uma nova fase da globalização descrita por Gruzinski. O mundo multipolar que se desenha desmente qualquer ideia de “fim da história” e dá razão às tensões previstas por Huntington e à complexidade histórica ressaltada por Hobsbawm, reafirmando que a disputa por valores, poder e narrativas permanece aberta e cada vez mais globalizada.
A conjuntura atual envolvendo Estados Unidos, China e Rússia é um testemunho da complexidade da política internacional, que não se curvou a um “fim da história”, mas se reinventa constantemente. As teorias de Fukuyama, Huntington, Gruzinski e Hobsbawm, embora escritas em diferentes contextos, oferecem lentes analíticas poderosas para decifrar as camadas dessa nova multipolaridade.
A rivalidade entre os EUA e a China, a assertividade da Rússia e as tensões geopolíticas ao redor do mundo demonstram que a história continua a ser moldada por uma confluência de fatores ideológicos, culturais, econômicos e históricos. Compreender o legado da “mundialização” de Gruzinski, as “linhas de fratura” de Huntington e as lições do “breve século XX” de Hobsbawm é essencial para navegar e antecipar os desafios e oportunidades de um cenário geopolítico em constante transformação. A capacidade de transcender visões simplistas e abraçar a complexidade das interconexões globais é o imperativo para a análise geopolítica no século XXI.
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(*) Coronel de Infantaria e Estado-Maior Veterano do Exército Brasileiro. Graduado em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Especialista em Política, Estratégia e Alta Administração. Mestre em Operações Militares e Mestre em Ciências Militares. Foi analista do Centro de Inteligência do Exército e Chefe da Seção de Inteligência do Comando Millitar do Planalto (Brasília/DF) e do Comando Militar da Amazônia (Manaus/AM). Atuou como Analista de Inteligência durante a Operação de Pacificação da Favela da Maré (Rio de Janeiro/RJ). Foi Comandante do 28º Batalhão de Infantaria Leve (Campinas/SP) e Subdiretor de Controle de Efetivos e Movimentações (Brasília/DF). Linkedin: https://www.linkedin.com/in/kristian-carlos-silva-amazonas-229558148/
1 Yoshihiro Francis Fukuyama (1952) é um filósofo e economista político norte-americano. Doutor em ciência política pela Universidade de Harvard e professor de economia política internacional na Universidade Johns Hopkins, em Washington.
2 Samuel Phillips Huntington (1927-2008) foi um influente cientista político conservador americano. Ele é mais conhecido por suas análises da relação entre militares e civis, investigações sobre golpes de estado e, principalmente, por sua teoria do “choque de civilizações”, argumentando que, no século XXI, as civilizações seriam os principais atores políticos e não os estados-nação. Consequentemente, as fontes de conflito pós-Guerra Fria seriam culturais e não ideológicas.
3 Eric John Ernest Hobsbawm (1917–2012) foi um historiador marxista britânico reconhecido como um importante nome da intelectualidade do século XX e membro do Partido Comunista Britânico. Seu trabalho é um estudo da construção das tradições no contexto do Estado-nação. Defendeu o argumento de que as tradições são invenções das elites nacionais para justificar a existência e importância de suas respectivas nações.
4 Serge Gruzinski (1949) é um historiador francês especializado em questões latino-americanas. Possui estudos sobre a imagem mestiça e o ingresso na modernidade do México. Nos últimos anos, tem realizado pesquisas sobre o Brasil e o Império Português.
5 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um dos mais importantes filósofos alemães e principal nome do idealismo. Ele desenvolveu a dialética, um método que explica o desenvolvimento da realidade e do pensamento através da superação de contradições (tese, antítese, síntese). Para Hegel, a história é o desdobramento do “Espírito” em busca da liberdade e autoconsciência. Suas ideias influenciaram profundamente a filosofia, a política e diversas outras áreas do conhecimento.
Agradeço mais uma vez, por ceder um espaço de seu Site especializado em Geopolítica para um artigo de minha autoria.
Obrigado pela confiança e amizade.
Parabéns pela abordagem. Precisa, relevante e oportuna.